Era véspera de Halloween, quando ele nos recebeu em sua casa. Na decoração delicada em que predomina a cor branca na casa do Apollo Nove, num dos sofás há um bem-humorado esqueleto com as pernas cruzadas. Sobre a mesa, um elegante chapéu de bruxa compõe com bom gosto o decor. Não se trata de um fruto do acaso. O produtor musical completou, em 2022, 25 anos de casamento com a artista plástica Marianne Vert. O casal tem quatro filhos, Brunno (24), os gêmeos Lucas e Felipe (22) e Igor (17). Apollo Nove já produziu de Rita Lee a Seu Jorge. Durante a pandemia, trouxe seu estúdio de gravação de São Paulo para a Granja Viana, onde mora desde a década de 1990, o que agora lhe poupa horas na estrada por dia. Da economia de tempo permitiu o surgimento do seu hobbie atual: ver o pôr de sol com a deslumbrante vista do quintal de sua casa, que dá para o São Fernando Golf Club, ouvindo num rádio de ondas curtas – que é sua nova paixão. Terminado o espetáculo, ele retoma as atividades criativas, que se desdobram entre a área musical e a publicidade.
Você é paulistano?
Sim! Nasci Francisco Carvalho, na maternidade São Paulo. Tenho 53 anos, sou de 27 de maio de 1969, geminiano. Acho signo muito legal, é tão interessante esta discussão. Prince, Miles Davis, Bob Dylan e Stravinski eram geminianos. Acho que este signo me dá liberdade de mudar de opinião constantemente e o prazer de ver a cara de surpresa de uma pessoa que você já tinha convencido antes, ao apresentar um novo argumento. Produzi o álbum mais recente da Rita Lee. Ela e o Roberto Carvalho, sim, conhecem astrologia para caramba. Meu ascendente é capricórnio e aí tem minha ambição: nada além de viver de música. É muito legal, como se a vida fosse um grande final de semana, bem intenso. Mas sempre trabalhei muito, ei dez anos da vida dormindo quatro horas por noite de tanto trabalhar.
E como nasceu o Apollo Nove?
Começou como um apelido para dizer que eu estava sempre em órbita, distraído, o que combina com ser um músico compositor, que é o que eu sou. Quando fui uma produção em música eletrônica, no início da carreira, eu achei que Francisco Carvalho era Chico Buarque demais [risos]. Na época, muita gente me conhecia como Apollo 9. Anos depois, fui lançar um álbum meu pela gravadora Ziriguidum, de Nova York, e aí o cara disse
não assinava com o numeral (9), mas com o nove por extenso. Depois fui saber que Apollo 9 era a nave que deu ruim, aí mudei definitivamente de Apollo 9 para Apollo Nove.
E como você começou na área musical?
Na minha infância, morávamos na Cidade Vargas, um bairro de classe alta, onde as casas não tinham muro e que virou de classe média no distrito do Jabaquara, zona sul da cidade de São Paulo, hoje perto do Imigrantes, aquele pavilhão que tem exposições. Eu tenho formação clássica, comecei a estudar piano com seis anos, em 1975. Naquela época, eu sonhei que estava descendo de carruagem a rua do bairro, tocando violino. Eu contei para minha mãe. Ela disse que violino não dava, mas tinha uma professora de piano no bairro. Comecei.
Você gosta de música erudita até hoje?
Gosto muito de clássico, acho que é o que mais ouço. Na época, minha mãe estava grávida de mim e comprou uma coleção de música clássica que acabara de sair. Achou que era um investimento legal. Conforme fui crescendo, ia abrindo os discos e ouvindo. Eles vinham com a biografia dos músicos e lia todas. Ouvia Beethoven e achava impressionante ele ter ficado gradualmente surdo. Eu acho que estava descobrindo minha vocação ali.
E como a publicidade entrou em sua vida?
Eu venho de uma família de publicitários. Meu pai era e meu tio fazia dupla com o Petit na Metro 3, nos anos 1960. A publicidade me fortaleceu como produtor. Eu trabalhei com o Petit da DPZ. Mas eu não queria ser publicitário. Cheguei cedo na faculdade, tinha 17 anos quando entrei na ESPM. E saí dois anos depois, com 19, em 1988. Eu simplesmente ei na recepção da faculdade e perguntei se tinha que pagar para trancar a matrícula, disse
tchau e fui embora, nunca mais voltei. Largar a ESPM no meio … [para a pensa] tive de contar para meu pai, foi difícil. No entanto, me ajudou saber publicidade, pois trabalho muito com trilhas comerciais. Fiz mais de 2 mil trilhas, o que faço desde 1995.
De 1989 a 1992 você trabalhou com música eletrônica?
Sim. Em 1992, entrei na MTV [uma rede de televisão brasileira dedicada ao público jovem extinta em 2013], onde fiz o áudio por três, quatro anos. Foi uma grande experiência, era como trabalhar no Google hoje. Tinha algo muito legal: eu mixava um negócio e, mal chegava em casa, já via tocando. Era muito rápido saber se tinha dado certo ou não.
Qual foi seu próximo o?
Depois, montei um estúdio em 1995 com o Antonio Pinto [filho do cartunista Ziraldo e irmão da cineasta Daniela Thomas, que aos 17 anos foi viver nos Estados Unidos, estagiando com o compositor e pianista Philip Glass], que faz trilhas para o Fernando Meirelles, como no filme Cidade de Deus. Um virou o cara do cinema e eu fui o da publicidade.
Como chegou ao Planet Hemp?
Em 1995. O Antonio era um cara mais do cinema, fez trilha do Terra Estrangeira. Já o Zegon [ou Zé Gonzales, nomes artísticos de José Henrique Castanho de Godoy Pinheiro,
DJ e produtor de música eletrônica e hip-hop brasileiro] tinha muitos amigos do circuito musical. Um dia, o Planet Hemp [banda brasileira de rap rock criada por Marcelo D2 e Skunk, em 1993, no Rio de Janeiro] foi ao nosso estúdio na Bela Cintra e ficamos amigos. Logo, o Zegon entrou na banda e, em seguida, eu como tecladista. Fizemos mais de 100 shows, tocamos em lugares memoráveis.

Quando você saiu da Planet Hemp?
Em 1997, por volta de setembro. Na época, já estava com a Marianne [sua esposa, a artista plástica Marianne Vert]. Ela grávida e, dois meses depois, eu saí. Tinha também uma questão prática. Tínhamos agenda em Salvador, por exemplo, ávamos a tarde ando o som e chegava a ordem de um delegado de que o show não ia acontecer, aí não ganhávamos. Numa turnê de 24 shows pelo Nordeste, fizemos apenas quatro. Naquele tempo, a censura já parecia algo muito anacrônico. Nessa época, o Planet convivia com Nação Zumbi, fiquei muito amigo do Chico Science. Participei de um álbum do Planet lançado em 2022 [Jardineiros, com faixas como Remedinho]. A banda ficou 22 anos sem lançar um álbum inédito. Todos da banda estão bem, foi muito legal de ver.
Você abriu seu estúdio em São Paulo em 2006?
A9 Áudio, em frente da cinemateca. Como trabalho muito com publicidade, virava quase toda noite lá. A produtora ficava na Vila Mariana e eu voltava para a Granja Viana, tomava banho e já tinha de retornar para começar outro dia.
Como foi trabalhar com o Roy Cicala, o engenheiro de som preferido do John Lennon?
O cara apareceu no Brasil e gravou todo mundo. Fui pesquisar. ou um tempo, ele estava vendendo um equipamento que havia trazido e eu disse que comprava, mas queria almoçar com ele. Almoçamos, ficamos amigos e ele começou a trabalhar comigo no Cheiro do Ralo [longa-metragem brasileiro lançado em 2007, dirigido por Heitor Dhalia e protagonizado por Selton Mello]. Em 2006, ficamos sócios e trabalhamos juntos por oito anos. Ele era incrível. Me ensinou tudo sobre estúdio. Então, em vez de comprar uma casa na praia, montei o estúdio.

durante ensaio em estúdio, na época
do lançamento do CD com “Res Inexplicata Volans”, em 2006
Trabalhar com publicidade e produção musical funciona bem?
Uma coisa alimenta a outra. Publicidade tem orçamentos muito maiores. Depende da campanha, mas em geral uma delas paga mais do que dois ou três discos. O legal da publicidade é que estou aqui [ele aponta para o smartphone sobre a poltrona branca da sala] e, independente do horário, pode pintar uma trilha para fazer. Você nunca sabe qual é a próxima missão, quem vai te chamar. Não tem esse negócio de música boa ou ruim. Pode ser uma música cubana, ritmos brasileiros, tem um espírito muito tropicalista neste ponto. Ao longo dos anos, você vai conhecendo todos os caras legais de todas as áreas. O que eu gosto de produção de disco é a coisa que fica. Tem reputação. Para o publicitário, só vale o que está no ar agora, é como galã de novela. Disco é o oposto – se você faz uma baita disco em 1995, é o cara. Mas o lado anônimo da publicidade é interessante também. Gosto das duas coisas. Desta forma, como me falou o Otto [Otto Maximiliano Pereira de Cordeiro Ferreira é um cantor, compositor, percussionista e produtor brasileiro], eu posso produzir trabalhos musicais que eu quero. Gosto de produzir discos e publicidade. Isso é muito de gêmeos.
Dos discos que produziu, qual você destaca?
Em 2005, lancei um álbum chamado Res Inexplicata Volans [do latim coisa voadora sem explicação]. Tem uma letra que a Rita Lee fez para mim, Inexplicata [que é interpretada pela Céu]. Já compus umas quatro ou cinco músicas com Rita Lee [também moradora da Granja Viana]. Já produzi Paralamas do Sucesso e a própria Rita Lee. Fiz um álbum do Nação Zumbi, que está para ser lançado, e o último do Marcelo Yuka, do Rappa, com várias músicas inéditas. Está lindo o disco do Planet também.
Você faz trilhas sonoras de séries também, não é?
Fiz dois episódios da Insania, da Disney, que não saíram ainda [trata-se de uma produção de suspense psicológico]. A trilha é o máximo. Eu acho muito legal e é o que tem de mais moderno [produzir]. As duas indústrias que estão mais em alta do mundo são a da cannabis medicinal e das séries e dos filmes produzidos pelos streamings. Gostei muito da Athena, da Netflix [filme épico de ação e tragédia francês de 2022 estrelado por Dali Benssalah, Sami Slimane, Anthony Bajon, Ouassini Embarek e Alexis Manenti]. Ele é dirigido por Romain Gavras, filho do Costa-Gravas [cineasta grego naturalizado francês, que se destacou por suas películas de denúncia política e ficção social]. Que trilha sonora! É a história de um adolescente de uns 20 anos que a polícia mata o irmão e ele cria uma guerra na rua. É lindo! Fotografia linda, uns planos de sequência que pelo amor de Deus!
Por que é interessante fazer trilhas para séries?
Gosto de fazer série porque tem uma evolução temática ao longo dos episódios. Eu estava contando para um amigo que gosto do sonzinho diferente, tanto em publicidade como produtor musical. Textura de som eu acho que é minha característica mais legal. A trilha de série é só aquele sonzinho diferente, só uma ilusão de áudio. Um eco que vem antes da coisa acontecer. Em relação à tecnologia, o áudio, por ser mais simples, sempre acontece primeiro. Avançou muito desde que eu trabalhava na MTV. Estou falando de 30 anos atrás. Às vezes, vou gravar gente de orquestra e eles falam “isto está errado”. Bobagem. Porque desde o Cage não tem mais erro.
Qual seu tipo de música preferida?
Hoje em dia, se eu estou de folga, vou ouvir algum disco [ele tem mais de oito mil vinis, metade de clássicos]. Um autor clássico como Chopin pode ter 20 discos com intérpretes diferentes, como o Nelson Freire. É algo não acaba, que não se esgota, todos são legais. Um Bach ainda é magistral, mesmo num dia em que ele tinha brigado com a mulher. Gosto de ler também. O último livro que li e gostei muito foi O Despertar do Mundo Novo, do Aldous Huxley. Você acha por 10 reais no mercado livre em edição feia. Os livros do Huxley são muito bons. É meu autor favorito.

Como você veio morar na Granja?
Em 1997, me casei com a Marianne. Na época, fomos morar na Orobó, perto do Vila Lobos. A gente era recém-casado, larguei a porta aberta, entraram na casa e roubaram as roupas do casalzinho começando a vida. Fiquei preocupado com ela, pois tinha horários de trabalho loucos e logo teríamos nosso primeiro filho [Brunno, hoje com 24 anos]. Aí viemos para a Granja, e começamos a morar no Carmel, dentro do condomínio da SP II, e a gostar daqui, da natureza. O isolamento é muito benéfico, as pessoas não vêm incomodar aqui. Estou isolado e acho muito bom. Os gêmeos nasceram em 2000 [Lucas e Felipe, atualmente com 22] e tinha acabado de montar uma produtora. Acho legal morar fora de São Paulo. A Granja tem um pouco essa coisa de você estar fora do grande centro, perto da natureza, para quem acredita na natureza.

Você tem algum hobbie?
Meu rolê está sendo um rádio de ondas curtas. Dá 17h e venho ver o pôr de sol e ouvir o programa do Júlio Medaglia na Cultura FM. Hoje peguei uma rádio chinesa, descobri porque usei o [aplicativo] Shazam para [identificar o nome d´] a música que estava tocando. É meu ritual: pego o rádio, ouço o programa que acaba às 18h, vejo o pôr do sol e volto para trabalhar. É meu momento. Antes da pandemia, eu ava uma hora e meia de trânsito para ir trabalhar e outra hora e meia para voltar. Ao trabalhar na Granja, eu ganhei três horas do dia com qualidade.
Quais seus sonhos?
Meu sonho é tirar umas boas férias para viajar. Com quatro filhos, minhas férias eram correr atrás de criança na praia [risos]. Só vou para Cannes [no sul da França] por causa do festival de publicidade. Profissionalmente, já fiz bastante coisas, mas quero continuar fazendo trilhas de séries. E produzir uns artistas legais e honrar a memória de artistas como o Marcelo Yukka, além de curtir minha família e meus amigos.
Que mensagem você gostaria de deixar para nossos leitores?
Sonhe, porque tudo o que eu sonhei eu consegui. Eu sonhava em ter meu estúdio, viver de música, conhecer gente interessante. Isso é muito legal. Mas o melhor é não perder a coragem mesmo. Para isto, é preciso abrir a cabeça, aceitar as diferenças e não ficar seguindo muitos os padrões. Não basta acreditar no que todo mundo acredita.
Por Monica Martinez